irracionalidade arcaica brasileira, José Sarney despediu-se do Senado e dos
quase 60 anos de atividade política. Planejou a própria imolação com o esmero
de um Napoleão se descoroando. Discursou por quase uma hora para um plenário
ermo. Vangloriou-se o tempo todo, exceto num parágrafo, que reservou à
autocrítica.
reeleição, que precisa acabar, estabelecendo-se um mandato maior”, disse. “Até
fazendo mea-culpa, de arrependimento, eu penso que é preciso proibir que os
ex-presidentes ocupem qualquer cargo público, mesmo que seja cargo eletivo. […]
Eu me arrependo, acho que foi um erro que eu fiz ter voltado, depois de
presidente, à vida pública.”
extraordinária. Só não atingiu a plenitude da perfeição porque chegou com o
atraso de uma vida. Ainda assim, trouxe uma dose de alívio. A alturas tantas,
Sarney declarou-se grato “ao povo brasileiro”, que lhe deu “a oportunidade de
ser presidente da República.” Como se sabe, não foi bem assim.
eleições diretas, a Nova República viu subir ao poder, pela via indireta do
Colégio Eleitoral, José Sarney, o vice mais versa da história, grande amigo da
ditadura militar até seis meses antes. O povo brasileiro é inocente. Sarney
deve sua presidência às conspirações do acaso e às bactérias que invadiram o
organismo de Tancredo Neves atrás de encrenca.
precário. Governou mal tão bem que não teve condições políticas de indicar um
nome para sucedê-lo. Seu aval cairia sobre qualquer candidatura como uma
sentença de morte. Mas havia um grande número de brasileiros dispostos a lançar
um olhar condescendente sobre sua ex-presidência.
execrável na sua gestão, Sarney completara, aos trancos e barrancos, a
transição da ditadura para a primeira eleição direta. Deu em Fernando Collor.
Mas essa é outra história. O que impediu a reabilitação historiográfica foi a
decisão de Sarney de continuar o seu destino de Sarney, candidatando-se a
senador pelo Amapá.
foi mais Sarney do que nunca. Presidiu o Senado quatro vezes. Estrelou o
escândalo dos atos secretos. Deu emprego a uma sobrinha de sua mulher que
morava em Campo Grande; deu um contracheque a uma sobrinha do genro que residia
em Barcelona; alçou à folha do Estado um personagem (“Secreta”) que trabalhava
como mordomo na casa da filha Roseana Sarney…
senador. Era Sarney que tinha o Brasil. Sob FHC e Lula, foi brindado com
pedaços do Estado. Sempre fez da administração pública o seu ápice existencial.
Cavalgando-a, alcançou a prosperidade privada. Seu nome fundiu-se ao
patrimonialismo. Sarney transformou o Brasil em puxadinho de sua próspera
biografia.